Naquele dia a cidade era o cenário de um cinema mudo – e os bobos transeuntes?
Todos eles meros figurantes daquele longuíssima-metragem que, de tão mudo que era, até mesmo os
barulhentos motores dos motociclistas só tinham lugar na última e longínqua camada de neblina branca.
Naquele dia, despontando de um mar de baixas pálpebras, nítido, lúcido, um
olhar me fisgou. Foi então que, por um segundo, algo se pôs a brilhar em meio àquela opacidade geral.
Aquele olhar-anzol... Que fisgou dentro de mim um fiapo de vertigem,
trazendo-me para a superfície da água morna em que cotidianamente me encontro
imersa; trazendo-me à superfície, à tona: assim como quando por um instante se
sente a brisa fria soprando a pele ainda molhada – brisa indesejável na
medida em que nos queima em frio, mas que nos vivifica ao trazer a existência toda
pra perto do corpo; a existência pungente beirando a pele.
Um olhar vivificou o que quase se perdia distraidamente no esquecimento, em meio às plumas brancas de minha memória. Ali, em meio às plumas, no
fundo – eu não sabia – havia ali uma pedra ametista. Aquele olhar alheio, complacente, clandestino, fez brilhar
uma das pontas da ametista em meio às plumas. Foi isso?
Meu coração é uma pedra ametista?
Que ainda brilha.