segunda-feira, 19 de maio de 2008

Óvibio


Um pulo
é uma tentativa frustrada
de se alcançar o céu

Breve

hoje estou livre a pássaros.
agora vejo formigas iluminando o chão com suas pequenas sombras.

(há pouco, idiotas motorizados ironizaram o falso lirismo desta minha tarde.)

os domingos têm assim um certo gosto de suspiro...
e uma certa e sutil resistência às poesias.

Formigueiro

E então um dia, em tempos de criança, descobri que não só livros com letras garrafais e inofensivos porta-retratos de família habitavam a estante do meu quarto.

*****

(pequena pausa para prévias considerações importantes):

1. Um rádio-relógio não parece ter o formato de um formigueiro.

2. Formigas não emitem sons perceptíveis a nós, e, portanto, não podemos associá-las a notas musicais.

3. Que se saiba, até hoje, não existem estações de rádio destinadas a estes insetos com três pares de patas, um par de antenas e corpo dividido em três compartimentos – sendo eles: cabeça, tórax e abdome.

4. De fato, nos livros de biologia, não se faz nenhuma referência ao aparelho auditivo das formigas.

(fim das considerações importantes)

*****

Observar formigas brotando do rádio-relógio da estante do meu quarto era para mim tão usual quanto observar peixinhos no aquário. Éramos cúmplices umas das outras, como se apenas nós soubéssemos de nossas respectivas estranhezas existenciais – cada qual formando com o seu contexto um conjunto nada homogêneo.

Digo então que o formigueiro era ali, naquela ocasião, o próprio rádio-relógio, sendo que a música talvez fosse surrealmente substituída e concretizada nas formas de formigas inquietas e ariscas – que se multiplicavam a cada olhadela.

Não eram pequenas. Eram marrom-amareladas.

(Haver um formigueiro na estante é como haver um oásis no meio do deserto.)

Não era sempre que apareciam. No entanto passar horas à espera de uma simples manifestação insetal não era para mim nenhum sacrifício. Às vezes uma ou outra arriscava se aventurar por sobre o mundo extra-rádio-relógio, mas logo depressa voltava para o interior do aparelho por um orifício qualquer, antes que eu pudesse tomar qualquer atitude. E os rápidos momentos em que eu podia presenciá-las eram simplesmente marcados por arrepios... Arrepios! Há algo no abstrato alheio que sempre me incomodou. Fui tomada de repente por um certo egoísmo e, confesso, cólera – afinal, o quarto não era só meu? – misturados com um sentimento de real submissão ao poder oculto daquelas formigas à primeira vista inofensivas.

Sabiam dos seus poderes de formigas. Eram todas estratégicas. Não havia vestígios de como haviam chegado ao rádio-relógio. E logo ao rádio-relógio! Desde quando seriam estes açucarados?

Talvez agissem à noite. Formigas são dotadas de uma autonomia despreocupada e inconsciente. Ignoram os seres humanos. Possuem sistema nervoso? Não sentem quando esmagadas; não absorvem o fervor do ato de serem esmagadas... No entanto conheciam os caminhos secretos. Sabiam que causavam arrepios e por isso brotavam incessantemente do rádio-relógio, numa mista demonstração de superioridade e rebeldia.

Éramos cúmplices, inclusive no sentido de que apenas nós conhecíamos umas a existência das outras, e, portanto, sobrevivíamos despreocupadas...

Até o dia em que as traí.

Revelei a outro ser humano a existência dos insetos musicais, a pretexto de puro asco.

(Esta fora a minha primeira representação de traição.)

*****

Formigas não combinam com radios-relógios. Rádios-relógios não combinam com a homogeneidade da mobília da casa. Formigas não seriam animais de estimação. Homogeneidade e estabilidade e organização e tudo como deveria ser e rádio relógio no lixo e estante vazia mas limpa combinariam com a personalidade da senhora dona de casa minha mãe.

O ecossistema foi então engolido pelo lixo. Não houve nenhuma tentativa de homicídio por inseticidas. A senhora dona de casa minha mãe disse assim que o rádio relógio já nem prestava mais, pois já não cantava mais música e nem acompanhava as horas do dia. Afinal, no mundo dos seres racionais, rádios têm como única função combinarem com música; e relógios, com marcação de horas.

(Acho mesmo que o rádio relógio foi direto para o lixo para que se evitassem tentativas de contra-revolução instantâneas, que de fato até hoje não apareceram...)

*****

No dia seguinte minha mãe eternizou um vaso de porcelana chinesa por cima da estante.

domingo, 18 de maio de 2008

Três de março

feliz de quem sabe rimar
amar
recanto
abismo
azul

o dia preenche seus quartos
num quarto fechado o poema é nu

deleite
dos corpos
dois corpos
se clamam
a vida não basta
um copo
derrama


a sede
a sina
a seiva
a cura
a fúria
a glória

de um dia
comum.