segunda-feira, 12 de outubro de 2009

QUARTO

(por Marcelle)

E ao longe já se escuta o trotar dos cavalos,
o turvo das imagens e dos sons delineia-se aos poucos no
porvir de um estrondo – avalanche
de galopes que em breve se aproximam,
que em breve atropelam, atravessam-me
a cabeça, ponta a outra de meus eixos
que os perco
desfaleço
e no quase me desfaço
mas agora já sou eu a galopar junto com eles
e agora já sou eu a conduzir essa manada,
terra-poeira, chão de deserto,
vento do norte:
agora é a mim que me levam consigo,
sou mais uma no bando?
Mas nesse instante já os vejo desmanchar no
horizonte do silêncio e eu aqui
– embora não –
nessa cama, nesse quarto
e esse corpo
esse teu tenro cansaço
esse teu doce suor e essa pergunta sem resposta que
teus olhos fazem aos meus e que meus olhos
fazem aos teus

(da série "Cômodos", inspirada na poesia puerperal de Eduardo Martins: puerperal.blogspot.com)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

VARANDA

(por Sophia)

Depois do dia em que te deixei, meu bem,
nunca mais os dias foram meus:
finas membranas dissipadas no ar,
hímens rompidos.
Tudo agora é feito bolha de sabão que
daqui a pouco já nem é mais,
para meu delicado espanto.
Digo que não posso mais tocar a solidez dos dias
tal qual outrora pude,
consegues mensurar meu desvario?
Os dias então são apenas a ressonância do que fomos –
pense na imagem dos marcos deixados na areia
pelo recuar das ondas.
E os ecos da saudade ressoam em desatino,
invadem a casa,
as janelas que dão para a varanda estão abertas.



(da série "Cômodos", inspirada na poesia puerperal de Eduardo Martins: puerperal.blogspot.com)

domingo, 4 de outubro de 2009

COZINHA

Vapor de fumaça,
frutas frescas repousam na cesta,
terça-feira morna e a lembrança do cheiro
quente da cozinha da avó.
Ah a avó,
seu livro de receitas na estante e os
poemas escondidos entre as páginas amareladas,
Inês sorri entre os dentes: naqueles tempos,
ler e escrever poema já não eram lá bons modos.
Cecília espremida entre duas receitas de bolo,
Meireles e merengues.
Tenta Inês balbuciar um ou outro dos Cânticos,
“O vento do meu espírito
soprou sobre a vida
e tudo que era efêmero se desfez.
E ficaste só tu, que és eterna”...
A água ferve, as horas chegam,
o tempo voa.


(da série "Cômodos", inspirada na poesia puerperal de Eduardo Martins: puerperal.blogspot.com)